O Bando de Teatro Olodum celebra 20 anos com 'Bença',
uma articulação entre seus passado e presente
*Val Benvindo
Uma noite em claro envolto em tentativas para solucionar problemas técnicos, um voo-relâmpago de ida ao Rio e outro de volta a Salvador na mesma tarde, e um início de noite conturbado, entre o acerto de detalhes imprescindíveis a uma ocasião especial: o suor que ainda escorre pela testa e a expressão de cansaço que contorna o rosto do diretor Márcio Meirelles não são em vão. A poucos minutos da estreia de “Bença”, encenação que marca sua volta à direção teatral, após quatro anos de afastamento, e celebra os 20 anos do Bando de Teatro Olodum, o que se vê é um homem completamente entregue ao seu ofício.
— Isso aqui tá um caos... — desabafa Meirelles. — Esse negócio de tecnologia a gente não controla.
Acho que vai dar tudo errado.
Tenho que resolver muita coisa.
Vestido de branco dos pés à cabeça, como pede Oxalá em noite de sexta-feira, o fundador do bando está de pé no segundo piso do Teatro Vila Velha, um dos palcos sagrados da cultura de Salvador e que hoje serve como centro de estudos da trupe. A cadeira livre a seu lado não parece ser o convite ideal. Grudado às barras de ferro que lhe servem como amparo, o diretor não se desconecta do que ocorre lá embaixo, onde 19 atores já se movimentam com seus trajes alvos em meio a uma série de peças de percussão, como surdos, tambores e até panelões de ferro. Em pouco mais de 20 minutos, o que era apenas um atabaque a ressoar timidamente se transforma numa verdadeira orquestra percussiva. A plateia adentra o espaço, e a montagem se inicia como num ritual, pontuado por cantos, coros, toques e gestos coreografados.
Uma hora e meia depois, já coberto pelos afagos dos amigos e a certeza de que a essência do seu teatro se mantém, Meirelles relaxa.
E recostado numa banco do lado de fora do teatro, ele fala de “Bença” como a articulação entre o passado e o presente do Bando de Teatro Olodum, como algo que se confunde com o legado do grupo: resgate e reafirmação cultural.
Elaine Nascimento, Telma Souza, Cell Dantas, Leno Sacramento e Valdinéia Soriano |
— O Bando começou a partir de uma ansiedade estética, por ver que uma cidade de maioria negra não tinha negros no palco. Pelo fato de não existir uma dramaturgia negra, sendo que os elementos das tradições africanas são extremamente cênicos e dramáticos — explica Meirelles. — O ritual do candomblé, por exemplo, é como uma ópera oriental... Os gestos coreográficos são códigos de uma narrativa. Mas isso nunca havia se transformado em teatro. Era essa a minha inquietação e o que fiz ao longo dos anos e com “Bença”. Me dá orgulho ver que hoje fazemos parte da História, que somos referência de um modo negro de se fazer teatro.
Como fundador do Bando de Teatro Olodum, Márcio Meirelles não só levou a cultura negra para os palcos como definiu uma linguagem cênica e dramatúrgica particular, algo que se evidencia em “Bença”, montagem que chega ao Rio no dia 10 de dezembro.
Além de servir como marco de um ciclo de 20 anos de atividade, a peça propõe um resgate da cultura e da memória populares, tendo como mote o respeito aos mais velhos e à sabedoria dos ancestrais. Mesclando artesanato e tecnologia, a encenação conta com 19 atores e dois músicos, que contracenam com depoimentos projetados em dois grandes telões instalados nas laterais do espaço e outro no chão do tablado.
Através das falas e dos cantos dos atores, ou das simples palavras ditas por figuras emblemáticas da cultura negra baiana, como Bule-Bule, Cacau do Pandeiro, D. Denir, Ebomi Cici, Mãe Hilza e Makota Valdina, a peça investiga a passagem do tempo, o conceito de morte e religiosidade.
— Tudo começou num projeto de pesquisa construído através de registros audiovisuais com essas antigas lideranças negras. A Makota Valdina, por exemplo, é uma mãe de santo que me guia desde o começo.
Dizia como era, como não era, dava esporro, ensinava os caminhos... — lembra o diretor. — Há uns dez anos surgiu a vontade de falar sobre o tempo, que é uma grande questão para o ser humano. E, principalmente, dentro das tradições que formam as culturas africanas.
Com uma estrutura narrativa não linear, a peça trata a passagem do tempo como algo construtivo e circular, e não como um elemento fadado a nos levar ao fim, ao término da vida.
— Em nossas entrevistas, encontramos líderes que se mantinham vivos apenas para esperar alguém para substituí-los. Isso resume bem o nosso trabalho de garimpagem do conhecimento, uma sabedoria que não se encontra nos livros e que acaba se perdendo se não for resgatada — afirma a diretora de produção Chica Carelli.
Acima imagem do músico e repentista Bule Bule |
— Acho que a mensagem principal é parar e pensar no tempo. No hoje, no que foi e no que será — diz Makota, nascida Valdina Oliveira Pinto. — Não estamos sabendo viver o nosso tempo. Estamos atropelando a marcha e priorizando o tempo que temos de forma errada, ou seja, sem interação. Substituímos as relações humanas por trocas não humanas.
Integrante do Bando desde 1994, apesar de estar morando no Rio, Lázaro Ramos embarca para Salvador no fim de semana para conferir o novo trabalho do grupo, responsável, em suas palavras, “por minha formação artística completa”: — A experimentação e a dramaturgia trabalhadas ali são fundamentais para contar a História do teatro brasileiro, que, às vezes, se restringe ao que é feito no Rio e em São Paulo.
O Bando desenvolve uma linguagem e um tipo de atuação únicos. Ao longo dos dez anos em que estive fixamente no grupo, não houve um dia em que eu não estudasse teatro, ensaiando, pesquisando linguagem ou fazendo alguma capacitação. É bonito ver que, depois de 20 anos, o passo além do bando é olhar para trás, resgatar a tradição.
Ciente do poder de comunicação de Makota Valdina, do seu corpo de atores e do repertório que esculpiu ao longo de 20 anos, Márcio Meirelles enxerga sucessos como “Ó paí, ó”, “Bai bai Pelô” e “Cabaré da rrrrraça”, além de talentos como Lázaro e a criação de uma linguagem teatral própria como frutos de um discurso estético que se transmutou, aos poucos, em ferramenta de transformação social e política.
— O que vejo hoje é que aquilo que era um projeto estético se transformou num projeto politico — afirma. — Afinal, quando comecei a fazer teatro, em 1972, durante a ditadura, encarava o palco como uma ferramenta política. Fazia teatro para conscientizar, contestar, mudar o mundo e transformar o Brasil. O teatro continua sendo isso para mim. É um discurso político.
Você convoca uma assembleia, um debate, uma discussão. Isso é sempre o mais importante.
O repórter viajou a convite do Bando de Teatro Olodum.
*jornalista do O Globo, matéria publicada na editoria de cultura/caderno2